quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O batom vermelho e o empoderamento

            Esse texto foi produzido ano passado logo após o dia 25 de julho (dia internacional da mulher negra, latino americana e caribenha), é um dia importante para nós mulheres negras, dia conquistado a partir de muita luta, porém, fiquei muito incomodada com algumas observações, vivenciei alguns debates, e a palavra do momento era EMPODERAR(acredito que ainda seja), eu ando um tanto cansada de terminologias criadas pra dizer que estamos isso, que estamos aquilo, vivemos essa fase do "poder" sem poder muita coisa, podendo ainda assim estar limitada dentro da caixinha do "se não for DIVA" nãos serve, enfim, são vários questionamentos que surgem, e transformo esse espaço criado recentemente como um espaço de troca, aprendizado.
Só ontem tive algumas informações que me preocuparam por perceber o olhar de "produto" que se tem sobre nós seja em qualquer campo e perder essa "bolinha da vez" agora significa prejuízo.        
Estamos de olho. Será?
Boas Reflexões para nós, Axé!
                                                    

Estamos num momento interessante em que muito se tem dito sobre empoderamento feminino negro. Há pouco mais de nove anos atrás, referências negras eram uma busca constante nas linguagens artísticas e na academia, mulheres negras que romperam o silêncio e fizeram história. Esta foi uma das pesquisas mais felizes que fiz porque pra quem está começando a trilhar um caminho, é comum se sentir só, com o fardo de uma missão. Eu não tinha muita pretensão em cima disso (a não ser dividir um pouco com as minhas próximas) e foi onde achei - juntamente com outras companheiras - de formar um coletivo de mulheres negras e periféricas.
Sim! Negras e periféricas. Entendendo que a mulher negra nem sempre é oriunda da periferia e que a mulher periférica nem sempre é negra. Foram muitos debates sobre essa questão, sempre no intuito de agregar e fortalecer essas mulheres. Foram quatro anos de coletivo, aprendendo muito com mulheres negras de periferia por onde passamos. Nunca achei que eu tinha que falar de feminismo de uma forma contundente: chegar nos espaços dessas mulheres - que é também o meu espaço - querendo empurrar cartilha feminista goela abaixo. Pra mim é sempre mais sábio ouvir do que falar. Eu ouvia até as coisas que a meu ver eram machistas, mas aí a gente trocava uma ideia de igual pra igual sem termos acadêmicos, sem a bíblia de Simone de Beauvoir e de nenhuma outra intelectual branca. Muitas vezes, vamos todas montadas no discurso e acabamos subestimando as nossas mães, tias, vizinhas, porque, na nossa ótica, estas são "alienadas" por passarem mais tempo na frente da tv do que lendo livros.
Este último 25 de julho foi florido com várias ações pela cidade sobre o tema. Marchas, debates, palestras, etc... Muitos eventos cujas produtoras e organizadoras são protagonistas. Lembrei que em 2009 muitas pessoas faziam cara de espanto quando ouvia falar do dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. Enfim, ouvi muito o mês inteiro, de diversas formas, a palavra "empoderamento" e fiquei pensando seriamente no que um debate, um sarau, uma exposição ou uma marcha empoderava as mulheres negras das periferias: as donas de casa, diaristas, merendeiras, autônomas e de várias outras profissões. O dia 25 pra essas mulheres foi só mais um dia. Por onde circulei poucos as vi, porém, chegando na minha quebrada, estavam lá. Daí eu continuei me perguntando sobre empoderamento negro. Do que adianta falar de Zumbi pra Palmares?   Falar para mulheres já “entendidas” sobre racismo, genocídio, leis, estética é empoderar? Ou estou alimentando meu ego de mulher negra que teve e tem acesso a muitas coisas a partir da luta, persistência de mulheres negras periféricas que me abriram esse caminho?   Passar o batom mais vermelho pra falar em público e aparecer nele, pra mim não é empoderamento, afinal, vivemos e alimentamos um lugar de disputa, é um fato. E isso não é empoderar, é alimentar vaidade. Orgulho negro feminino passa por diversas questões e uma delas é a estética, falamos muito de autoestima, valorização de cabelos, traços e adornos, mas quanto disso é usado contra nós mesmo nessa onda de recalque e lacração que vivemos?
E as mulheres reais negras de periferia que continuam na lida do dia a dia, morrendo de doenças que estouram as decepções da vida, estouram em forma de câncer, aneurismas, varizes, esquizofrenia, mioma, etc, etc, etc... Isso quando não morremos como a Claudia, arrastadas pela polícia, pela mão de um homem violento, por uso de drogas e tantas outras formas de extermínio que foram criadas sob medida para nós mulheres pretas.
Precisamos pensar e ter união quando se trata dos descasos da saúde pública, que é por esta aliada forte desse plano de extermínio, que passamos quando adoecemos ou vamos parir. Nós precisamos lacrar nas nossas quebradas. Usar black power, dreads, tranças, não é sinônimo de que está tudo certo. É legítimo ressaltar a estética, mas é preciso saber responder quando somos questionas por mulheres e crianças pretas por que fizemos “isso” no cabelo. Será que vamos dizer somente que é pra sambar na cara da “dazinimiga”? Ou vamos ser cuidadosas e didáticas pra empoderar nossas próximas?
Meu lugar, meus posicionamentos não podem ser minha zona de conforto, dialogar fora dos espaços de conveniência sempre será necessário e senão não temos porque pontuar mais nada e todo o discurso de empoderar as mulheres pretas só viram mais um discurso. O nosso batom mais vermelho não pode ser usado pra disputa porque lindas, maravilhosas, rainhas, deusas e todos os outros nomes que gostamos de usar, nós já descobrimos que somos e essa descoberta precisa chegar a todas nós. A informação precisa chegar a todas nós, chegar em quem não pode pagar por um curso de empoderamento, um curso de estética negra, um curso de qualquer coisa que seja de importância para a emancipação de nós mulheres negras. Na onda do comercio seremos mais usadas na vitrine da dita cuja “Elite preta”? De afro conveniência estamos cheias até a tampa, e cada dia que surge um rótulo novo pra ilustrar nós mulheres pretas me da uma agonia sem fim, penso que o que menos precisamos é ser peça de vitrine e sim autenticas e multiplicadoras.

Raquel Almeida

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Zarina¹


Ela era por si só uma joia, pura e bruta, entrou no ônibus, deixando tudo da bolsa cair, não, ninguém a empurrou, era um tanto desajeitada, uma senhora ajudou pegar tudo que havia caído no chão do ônibus, ela de fone, num risinho sarcástico como quem diz “eu não aprendo”. No fone, soava alto e gritante um som que quase todo mundo conseguia ouvir de tão alto, estava ouvindo H.Aço - DMN e enquanto catava seus pertences do chão, cantarolava o refrão e todos olhavam, uns riam, outros achavam que era apenas mais uma doida que entrara no buzão. Sentou-se ao meu lado, de óculos escuros quase não da pra saber o que e pra onde as pessoas olham mais eu consegui ver, ela olhando pela janela num olhar vazio, perdido, tentando encontrar numa paisagem de fora algo que fosse preencher o vazio dos seus olhos.
Ela estava inquieta, balançava os pés, num ritmo de acelerado, se tivesse assas voaria dali, aquele ônibus estava andando muito devagar e  tinha pressa, e a pressa dela me deixou também agoniada, ela pegava nos cabelos, enrolava, cheirava, tocava neles como se estivesse lustrando algo fino e valioso, como disse, era uma joia e se tratava como uma não as joias convencionais, era mais, muito mais, tinha uma tonalidade que lembrava o bronze, eu me via nela. Aparentemente era mulher jovem, num jeitão meio descolado e casual, dava pra sacar pelo crachá que havia caído da bolsa que tinha um emprego nem tão ruim comparando com os que são destinados pra pessoas como nós, conforme as musicas da sua playlist mudavam ela cantava e a voz dela era hipnoticamente bela, não era essas vozes brancas brandas enjoadas, era uma voz alta, firme, expressiva, assim como ela, e ela engatou numa musica de Erykah Badu que identifiquei mais pelo “huhumhum” do que pelo inglês esquisito que tentava, ela não se achava interessante para o mundo, apesar do colorido da sua pele do colorido dos seus cabelos, tudo lhe era cinza e sem graça, nunca conseguiu se encaixar na vida, sempre cavando com as unhas seus espaços em todas as áreas e por isso a vida lhe cansava, ela sempre quis mais, e pode ser que todo o universo com suas astrologias tenha contribuído pra que ela fosse uma pessoa que queria sim holofotes. Mais ela era muito orgulhosa pra admitir, tinha medo de ser mal interpretada.
Era um furacão, pronta pra entra em ebulição e afetar tudo e todos, isso era nítido pelo balançar apressado dos seus pés, e sentia um aperto, um vazio, um querer pra além do entendimento de qualquer um, não tinha muitos amigos e o pouco que tinha achava joia confusa demais pra dar importância pra cada palavra que saia da sua boca, ninguém se dava conta que cada palavra era uma escada pra desvendar o paraíso que ela propunha. O ônibus parou num ponto que tinha uma arvore alta, cheia de galhos que pareciam estar de braços abertos dançando com o soprar do vento, ela ficou olhando, e balançava o corpo no mesmo tempo do balançar dos galhos, queria voar, queria soar, queria ser. Eu a olhava e olhava a arvore, ambas altas, tonalidade bronze e cabelos coloridos, foi uma mostra de sensibilidade que essa moça tinha mas aparentava não ter, quando o ônibus deu partida continuou olhando pra arvore num tom de despedida, e riu, novamente o riso sarcástico de como quem se encontrou.
Coincidentemente demos sinal pra descer no mesmo ponto ela tirou o óculos escuros, esfregou os olhos que pareciam estar marejados olhou pra mim e foi assim que ela me confessou tudo a seu respeito, tudo que eu tinha sentido e que ela não havia dito, falou coisas com as mãos, os pés, com o corpo todo, mas a fala dos olhos foi mais precisa nunca vou esquecer de ouvir os olhos de alguém, aprendi com ela, aprendi com a joia.

O ônibus parou, desci ela desceu, ela tentou atravessar a rua, foi barrada pelo fluxo de carros, uma moto a interrompeu não teve o que fazer, ela ficou e eu segui.


¹ Zarina = Mulher de ouro